domingo, 4 de abril de 2010

Evocações Fortuitas

Evocações fortuitas

Ferreira Gullar lembra a morte de amigos na crônica de 05/04/2010- Folha São Paulo e diz:
"São coisas doídas, mas as lembro com doçura; em mim, os amigos que se foram continuam vivos"...


Acabei de ler e lembrei também com doçura de duas queridas amigas que se foram: Derluci e Clesilda.




Derluci foi minha amiga de infância. Seu pai tinha fazenda na região em que eu morava em Goiás. Ela tinha muitas irmãs e um irmão que foram colegas de escola dos meus irmãos. Quando eu entrei para a escola, eles já haviam se mudado para Rio Verde. Mas nunca perdemos contato. Quando iamos a Rio Verde, eu me encantava com ela. Criança ainda, rica, trabalhava como entregadora de marmitas. Ia com ela ao Restaurante pegar as marmitas e saíamos entregando. Ela tinha uma desenvoltura com as pessoas que me impressionava. Ela sabia e decidia tudo. Se iamos à sorveteria ou ao cinema. Na sorveteria era ela quem escolhia os sabores e o tamanho do sorvete. Cinema só se ela não tivesse assistido o filme. Quando eu voltava pra casa, levava um monte de gibis que ela me fazia comprar, para ela ler, é claro. Nas férias, ela ia para nossa casa. Meu Deus! Como era divertido! Ela sabia todas as brincadeiras: parlendas, cantigas de roda, e tudo que a sua criatividade inventasse. Viemos para Uberlândia e pouco tempo depois, após a morte do seu pai, ela e a mãe vieram de Goiás para morarem em Uberaba, onde a mãe estava constantemente fazendo tratamentos de saúde. Ela vinha muito para cá e acho que eu nunca ria tanto como quando ela estava aqui. Ela era super engraçada. Tinha uma presença de espírito incrível e era ótima contadora de histórias. Muitas histórias acontecidas com ela ou inventadas (vai saber) mas hilárias. Ela tinha um jeito peculiar de contá-las que nos matava de rir. Era desbocada e sem censura. Aos domingos, iamos a 1ª sessão no Cine Uberlândia e se era abordada por algum garoto que lhe perguntava o nome, ela dizia: Sumaia. Pronto. Começava a sessão riso. Dentro do cinema os garotos ficavam passeando pelos corredores e só se sentavam depois que a luz apagava. Uma vez, um deles pediu se podia sentar com ela. Ela disse: Não, minha mãe está sentada logo atrás e apontou para a primeira senhora que ela viu sentada atrás de nós. Como segurar o riso? Muito despachada, chegamos do cinema e ela foi pra cozinha fazer um "mexido". O cheiro gostoso foi se espalhando e já me peparava para comer quando ela disse: Tá pronto, traga 2 copos d'agua. Quando dei a primeira garfada...Era pura pimenta. A danadinha errou e ao invés de avisar, pediu pra levar a água. Combinamos que depois que completassemos 18 anos iriamos para um convento. Imagine! Fui várias vezes passar finais de semana na casa dela. Fomos a zilhões de festas em Uberaba. Ela, muito comunicativa, vaidosa, sempre maquiada e de cabelo arrumado, conhecia Deus e o mundo, dançava como ninguém e adorava festas. Quando se casou fui sua madrinha, e na hora de vir embora, cortou um enorme pedaço do bolo, colocou numa caixa de sapato e me deu para trazer. Comemos bolo quase uma semana e nunca mais comi outro tão gostoso. Meu pai se deliciava com ela. Ele ria de chorar. Ela me escrevia umas cartas (pena que eu não guardei) que faziam a alegria dele. Existiam dois tipos de festas: com ela e sem ela. Ela vinha a todos os eventos da nossa família e divertia todo mundo. Foi minha madrinha de casamento. No meu aniversário, ela telefonava na véspera e dizia. Estou ligando hoje porque quero ser a primeira a lhe cumprimentar. Um dia me ligou e disse: Você está sentada? Então, sente. Ganhei um presente. Qual? Um Câncer de mama. Foi operada. Tirou um quadrante do seio, colocou prótese. Esteve aqui logo depois, numa festa da´nossa família. Alegre, feliz e se dizendo curada. Pouco tempo depois - recidiva. Numa de minhas visitas, o marido dela nos disse que o Câncer havia se generalizado. Na última vez que fui vê-la, levei uma caixa cheia de doces do Vila Verde que ela adorava. Não sei se conseguiu comê-los. Já estava mal. Tinha separado fotos que guardou para mim. Estava se preparando para nos deixar. Até que recebi o telefonema que não queria receber. Ela se fora. Não teve filhos e a sobrinha que esteve com ela nos seus últimos dias disse que ela pediu: Quero morrer de pé. Não me deixe entregar. Se eu não conseguir passar meu batom, passe para mim. Mas não me deixe sem batom.


Clesilda, eu conheci na Faculdade. Fomos colegas no Curso de Pedagogia e do mesmo grupo de trabalho. Quando nos graduamos, fomos dar aulas em Centralina. Trabalhavamos aqui durante a semana, iamos de taxi na sexta feira a tarde,ela e outras professoras voltavam após as aulas e eu ficava para dar aulas no sábado de manhã e voltava de ônibus. Ela era uma pessoa simples na sua Essência. Indignava-se com as injustiças sociais, com as mediocridades e tinha toda a coragem do mundo para assumir e defender suas idéias. Sua casa era a casa dos amigos e de muitas festinhas no tempo da Faculdade. Ela fez meu Chá de Cozinha e foi minha Madrinha de Casamento. Depois que se casou mudou daqui, mas todas as vezes que vinha a Uberlândia passavamos, pelo menos, uma tarde juntas. Retornou para Uberlândia e, nem o passar do tempo conseguiu fazê-la perder a indignação e aquela chama revolucionária que alimentou nossa vida universitária durante a Ditadura. Nossos filhos iam crescendo, estudando na mesma escola, e nossa amizade continuava se fortalecendo. De repente, ela começou a se queixar de um incômodo no abdomen e no primeiro exame, uma laparoscopia, veio o cruel diagnóstico. Câncer. Foi uma luta incansável da família e dos amigos buscando tratamento. Muito hospital, muito remédio, muito sofrimento. Até que, numa tarde na sua casa, ela me disse: Mandaram buscar um remédio (de alguma cidade do Nordeste, não me lembro qual), mas eu não quero mais usar. Eu só uso porque vejo o esforço das pessoas tentando me ajudar. Para que prolongar uma vida sem qualidade como a que estou tendo? Ela cansara de lutar. Estava se entregando. Saí da casa dela quando já estava escurecendo e foi a última vez que a vi.

2 comentários:

Cyntia disse...

Delma,
Lendo esta sua história, lembrei de te contar que as meninas adoram ouvir suas antigas histórias e vira e mexe me contam na maior empolgação... estes dias a Ana Isa na volta do balé me perguntou se eu sabia do seu caso do cavalo, do leite que derramou, contando tudo atrapalhado e dando risadas do caso... uma gracinha, mto linda!!!
Pode contar mais, elas adoram...
Bjim,
Cy

Delma disse...

Cyntia
Preciso registrar as histórias delas. Sempre quero anotar e acabo esquecendo.
Bjs