Acho que Cisne Negro levará o Oscar de Melhor Filme. Enquanto isto, vamos lendo as críticas para concluirmos se o filme será mesmo merecedor do prêmio.
Dirigido por Darren Aronofsky. Com: Natalie Portman, Mila Kunis, Vincent Cassel, Barbara Hershey, Winona Ryder.
Parte 1: Odette e a Razão
Cisne Negro é o que o clássico Os Sapatinhos Vermelhos seria caso tivesse sido dirigido por David Cronenberg e David Lynch numa parceria inédita. Utilizando o balé O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, como centro narrativo exatamente como aquele excepcional longa de Michael Powell e Emeric Pressburger empregava a fábula concebida por Hans Christian Andersen, este filme de Darren Aronofsky representa não apenas uma bela homenagem ao balé como ainda funciona como um fascinante olhar sobre o processo criativo de uma artista obcecada por detalhes – além, claro, de representar uma experiência aterrorizante que deixaria orgulhosos os dois Davids citados no início deste texto.
Escrito por Mark Heyman, John J. McLaughlin e Andres Heinz a partir de argumento concebido por este último, Cisne Negro acompanha a bailarina Nina Sayers (Portman), que, depois de anos integrando o corpo de baile de uma grande companhia de dança, finalmente ganha a oportunidade de protagonizar um espetáculo quando a antiga estrela do grupo, a veterana Beth Macintyre (Ryder), é obrigada pelo diretor Thomas Leroy (Cassel) a se aposentar depois que o público começa a escassear. Profundamente dedicada à dança, Nina mora com a mãe, a ex-bailarina Erica (Hershey), e enxerga a chance de estrelar O Lago dos Cisnes com ambigüidade: por um lado, é a realização de um antigo sonho; por outro, logo começa a sentir a pressão por não conseguir incorporar toda a sensualidade exigida pelo papel de Odile, o “cisne negro” que se passa pela casta Odette (esta naturalmente vivida pela moça sem dificuldades). Torturada por estranhas visões, Nina ainda enfrenta a ameaça representada pela chegada de uma nova bailarina, Lily (Kunis), cuja espontaneidade logo atrai a atenção de Thomas.
Adotando uma lógica sombria já em sua cena inicial, o filme mergulha o espectador no inconsciente de Nina desde o primeiro segundo, quando acompanhamos seu pesadelo calcado em escuridão. Já desperta, a moça não perde um momento sequer antes de calçar as sapatilhas e testar o próprio corpo, deixando claro de imediato que todos os minutos de seu dia são dedicados incondicionalmente à sua Arte. Além disso, mesmo antes de ser eleita sucessora de Beth pelo exigente Thomas, a protagonista já surge insegura e intimidada como se estivesse sendo vítima de um escrutínio impiedoso por parte de suas colegas – e o design de som da produção é fabuloso ao nos remeter a esta paranóia contínua de Nina através de sussurros constantes que ora soam como risadas de escárnio, ora como críticas veladas às suas performances no palco.
Magra a ponto de inspirar preocupação, Natalie Portman encarna Nina como uma criatura extremamente frágil que parece sempre prestes a desabar: bulímica e determinada a atingir a “perfeição” (um conceito que Thomas enxerga de forma diferente, por sinal), a garota se comunica com uma voz delicada que muitas vezes parece nem deixar sua garganta completamente, falhando em se impor até mesmo ao ser provocada pelas demais bailarinas. Parte desta passividade enlouquecedora se deve, claro, à própria falta de paixão que se manifesta também em sua técnica excessiva, mas não só: infantilizada pela mãe, Nina expõe sua fragilidade emocional até mesmo em seu quarto de tons rosas e abarrotado de bonecos de pelúcia – e que, como se não bastasse, não lhe oferece a menor privacidade, já que Erica jamais permite que a filha tranque a porta.
Assim, o que resta à garota é mesmo o balé – algo que Portman ilustra com uma verossimilhança impressionante desde a primeira cena, quando Aronofsky acompanha os movimentos elegantes de seus pés apenas para subir a câmera e revelar que se trata da própria atriz e não de uma dublê. Além disso, ao manter seus quadros sempre próximos da moça enquanto esta gira pelo palco, o cineasta imprime uma formidável energia aos números, retratando a intensidade dos exaustivos ensaios com brilhantismo (e aqui mais uma vez o design sonoro merece destaque por ressaltar os esforços da protagonista através do ranger do assoalho sob seus pés e até mesmo ao remeter ao desgaste de suas articulações durante as coreografias). Neste sentido, aliás, Aronofsky é hábil também ao explicitar a necessidade da repetição infinita durante os ensaios até que tudo chegue ao ponto ideal – um tema caro a qualquer artista e que é representado também pelas várias pinturas que, praticamente idênticas, preenchem o quarto (e o tempo) da mãe da bailarina.
Erica, vale dizer, é interpretada por Barbara Hershey com uma complexidade intrigante: ainda que pareça realmente torcer pelo sucesso da filha, a ex-bailarina exibe uma sutil crueldade ao discutir os obstáculos enfrentados por esta – e o fato de manter o cabelo preso num coque típico de dançarina remete diretamente à carreira que teve que abandonar ao se tornar mãe e que ainda é motivo de um claro ressentimento na relação das duas mulheres (além disso, ao vestir-se sempre de preto, Erica se torna uma alusão constante ao lado adulto, independente e sedutor, que Nina tem dificuldade em alcançar). Enquanto isso, Vincente Cassel surge intenso e exibindo imensa autoridade como Thomas, sendo competente ao deixar óbvia a frustração que seu personagem sente diante da incapacidade de sua nova estrela de abraçar a própria sensualidade ao dançar como Odile, o cisne negro – e em certo momento, o ator consegue a proeza de permitir que o espectador perceba, sem que diga uma palavra, o impulso do diretor de substituir Nina por Lily.
Um impulso natural e compreensível, diga-se de passagem, já que a Lily composta por Mila Kunis é o oposto da Nina de Portman: enquanto a primeira claramente se diverte ao dançar (mesmo que pecando pela ocasional falta de técnica), a segunda parece sempre torturada em seus esforços absurdos de realizar cada movimento com precisão absoluta, contrapondo a visceralidade da novata à racionalidade artística da veterana – e discutirei outros aspectos desta dualidade na segunda parte do texto. Aliás, Natalie Portman merece todos os aplausos do mundo ao deixar evidente a dureza da performance de sua personagem ao dançar como Odile: ao mesmo tempo em que apreciamos a fluidez de seus passos, percebemos claramente a ausência do elemento de sedução cobrado por Thomas, o que é fundamental para que compreendamos o arco dramático percorrido pela protagonista.
Mas Cisne Negro não é uma vitória apenas para Portman; dono de um currículo tão impecável quanto o da Pixar (e, sim, incluo aí o subestimado Fonte da Vida), Darren Aronofsky exibe uma inteligência admirável ao forçar o público a compartilhar a paranóia de Nina não só através do já comentado design de som, que ilustra seu medo do fracasso e do ridículo, mas também seu crescente desequilíbrio psíquico e emocional, começando em pequenos instantes de incerteza (como a impressão de ver uma sósia no metrô ou o assustador movimento em uma pintura capturado pelo canto dos olhos) até atingir uma espécie de esquizofrenia descontrolada. Além disso, o cineasta confere autenticidade ao projeto ao enfocar em detalhes o cotidiano das bailarinas, como ao mostrá-las “quebrando” as sapatilhas e arranhando o solado para aumentar o atrito ou ao trazê-las sendo massageadas após um dia de desgastantes ensaios.
Fotografado com talento por Matthew Libatique, que utiliza as sombras com eficiência para estabelecer o clima sufocante da narrativa, Cisne Negro também é beneficiado pela excepcional trilha sonora de Clint Mansell, outro colaborador habitual de Aronofsky, que parece incorporar versões dissonantes dos temas concebidos por Tchaikovsky em sua própria trilha, remetendo constantemente ao balé que se torna uma obsessão dos personagens ao mesmo tempo em que o transforma em algo próprio e profundamente evocativo. E se o design sonoro de Brian Emrich e Craig Henighan merece uma terceira menção neste texto ao evocar também O Lago dos Cisnes através de ruídos como o bater de asas que acompanha sutilmente certos movimentos da protagonista, os efeitos visuais empregados pela produção também se apresentam fabulosos não só pela maneira orgânica com que são incorporados ao projeto, mas também pela qualidade técnica apresentada (e aqui me refiro especificamente aos acontecimentos – que não irei revelar, obviamente – vistos no terceiro ato da projeção).
Explorando ao máximo o sensacional roteiro de Heyman, McLaughlin e Heinz, Cisne Negro acaba criando intrigantes ecos temáticos com a própria obra de Tchaikovsky (vide Os Sapatinhos Vermelhos e Andersen) e também com os demais longas da carreira de seu cineasta, desde a metamorfose autodestrutiva vista em Pi até o salto característico de Mickey Rourke ao final de O Lutador – e, no processo, forja não apenas uma narrativa densa e repleta de simbolismos como ainda surge como um soberbo estudo do processo criativo de uma artista que, como tantos outros colegas de profissão, só consegue se enxergar completa e realizada ao entregar-se sem reservas ao ofício de construir algo belo e significativo.
Parte 2: Odile e o Espelho
(Atenção: aqui discutirei alguns aspectos temáticos e narrativos mais específicos de Cisne Negro e, assim, abordarei incidentes significativos da trama.)
Espelhos e reflexos sempre representaram uma obsessão para cineastas de todo o mundo – algo que surgiu como conseqüência da riqueza de simbolismos que inspiram, claro, mas também do próprio desenvolvimento psíquico pelo qual todos atravessamos até nos reconhecermos como indivíduos (algo que levou, por exemplo, o teórico Jean-Louis Baudry a estabelecer sua genial analogia entre o espectador cinematográfico e a fase do espelho descrita por Lacan). Assim, de Hitchcock a Buñuel ou de Fritz Lang a Tarkovsky, diretores das mais diversas épocas e donos de estilos variados empregaram o jogo de duplos como base temática de uma ou mais de suas obras – mas talvez poucas vezes este tenha sido utilizado de maneira tão intensa e orgânica como em Cisne Negro.
Constantemente levada a observar os próprios movimentos em vários espelhos a fim de refinar sua técnica, Nina Sayers já surge nos primeiros minutos de projeção sentada diante de múltiplos reflexos na sala de seu pequeno apartamento – e não demora muito até que, no metrô que a leva aos ensaios, seja novamente reproduzida na janela do vagão enquanto repara uma figura que, no carro seguinte, parece uma cópia de si mesma (mas envolvida em roupas pretas que contrastam com a brancura de seus próprios trajes). Com isso, Aronofsky logo estabelece a lógica visual que irá reger sua narrativa: o contraste entre branco e preto e, claro, a natureza partida da protagonista.
Pois Nina, como já discutido na primeira parte da crítica, é uma bailarina cuja personalidade frágil e infantilizada estabelece uma combinação perigosa com sua obsessão pela perfeição – especialmente ao ser obrigada a explorar um aspecto desconhecido de sua natureza: a sexualidade. Reprimida por acreditar que a disciplina absoluta lhe trará a precisão técnica que a transformará numa grande dançarina, a moça deixa de lado qualquer prazer que o balé possa oferecer, repetindo mecanicamente os passos concebidos por seu diretor sem jamais conseguir se libertar a ponto de enriquecê-los com a espontaneidade que o sujeito tanto deseja reconhecer em sua performance – e esta limitação auto-imposta que Thomas já afirmara ter observado ao longo dos anos se torna ainda mais prejudicial quando a garota é obrigada a assumir uma personagem que só virá à tona completamente caso construída com visceralidade: Odile, o cisne negro.
É quando surge em cena Lily, que Nina enxerga ora como rival, ora como parceira: espontânea e alegre, a garota logo se apresenta como o reflexo da protagonista, remetendo ao seu tipo físico, mas se comportando de maneira diametralmente oposta – o que se reflete não só nas cores de suas roupas, mas também no fato de Mila Kunis ser uma alternativa morena à alva Natalie Portman. Com isso, o conflito entre Odette, a princesa amaldiçoada de O Lago dos Cisnes, e a mal-intencionada Odile, se reflete também na dinâmica das duas bailarinas, encontrando respaldo nas asas negras que Lily traz tatuadas nas costas e na facilidade com que esta seduz todos ao seu redor. A partir daí, Nina passa a empregar a outra como a representação de seu possível fracasso, criando um alter-ego que, possuindo o rosto de Lily, surge como uma espécie de Tyler Durden de sapatilhas e collant preto.
Assim, aos poucos este lado de Nina parece se descolar de sua metade mais retraída – algo que Aronofsky inicialmente retrata com sutileza ao trazer os reflexos da bailarina se movendo com um levíssimo atraso com relação à moça até eventualmente se libertarem de vez, embora permaneçam por um bom tempo presos do outro lado do espelho (leia-se: em sua mente). À medida que a protagonista se esforça para encontrar Odile, porém, seu alter-ego “Lily Durden” (para diferenciá-la da verdadeira Lily) ganha força e passa a se manifestar fisicamente, como se Nina buscasse liberar a sexualidade há tanto sufocada – e é fascinante notar, por exemplo, como ao surgir deitada na cama, a estampa preta de seu travesseiro branco parece formar um esboço de asa saindo de suas costas, num belo indício da transformação que ela irá experimentar.
E, de fato, a metamorfose é absoluta: se inicialmente Nina dançava de maneira fria e reprimida como Odille, na fantástica dança final ela se entrega de vez à personagem – e Portman oferece uma performance inesquecível ao ilustrar a diferença para o espectador, já que até sua respiração pesada provocada pelo cansaço surge como um gemido quase sexual.
Mas alcançar este feito tem um preço: a esta altura, Nina e Lily “Durden” rivalizam pelo corpo e pela consciência da protagonista (reparem o memorável plano no qual Aronofsky parece fundir as duas brevemente num jogo de reflexos no apartamento da garota até que a segunda se separe e se afaste da primeira) – e, assim, a única maneira de Odile surgir no palco seria através da eliminação completa da recalcada Nina, que, para isso, mata aquela figura que se encontrava em seu caminho rumo à almejada perfeição: ela mesma.
Sua arma? Um afiado pedaço de vidro.
Extraído de um espelho.
Freud teria um orgasmo com este desfecho. E com razão.
Pablo Villaça
30 de Dezembro de 2010
Fonte: Crítica