domingo, 6 de junho de 2010

Carlos Heitor Cony - Mineiros e Baianos

Grande sertão em transe
Carlos Heitor Cony (Ilustrada- Folha de São Paulo - 4/06/2010)

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Aqui entre nós: o brasileiro perfeito deveria ter as qualidades e os defeitos dos mineiros e dos baianos
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"OS BAIANOS que me perdoem, mas os mineiros são fundamentais.
Digo isso e logo me arrependo. Pois a fundamentalidade essencial do mineiro é recusar a própria fundamentalidade.
Tal como o personagem que fazia prosa e não sabia, os mineiros são fundamentais, sabem, mas fingem que não sabem, embora saibam que fingem. No fundo, mineiro é um embrulho, e a frase anterior não saiu embrulhada em vão: ela decorre da própria mineiridade.
Bem, dirão vós outros, a propósito de que esse elogio ou essa espinafração em cima dos nobres filhos das Gerais? Em primeiro lugar, não se trata de elogio ou crítica, antes de constatação e estímulo.
Dos mineiros costumam surgir todos os problemas, todas as redenções e encalacradas pátrias. De lá vieram os Inconfidentes, o Manifesto Liberal que ajudou a derrubar a ditadura do Estado Novo.
De lá veio a fornada gloriosa do PSD -que, na época, era espezinhada, gozada, levada ao ridículo, mas hoje, com a perspectiva de tudo o que nos aconteceu, surge em nossa memória como um verdadeiro Olimpo de Varões, Deuses e Sábios.
De Minas veio também o Movimento de 64, que nos jogou numa série de crises, e, de Minas, segundo espero, poderá vir um gesto, um aceno de esperança e salvação. A recíproca é verdadeira: de lá pode vir, novamente, uma catástrofe.
Bons políticos, os mineiros se escafedem na hora da força e se recolhem à prudência. Em 30, em 64, alguns mineiros se tornaram heróis quando ocuparam a Mantiqueira -mas esses movimentos costumam provocar poucos tiros e muitas fotografias.
Nesse particular, os gaúchos são mais aguerridos e se aproveitam dos movimentos ditos revolucionários. Não é à toa que o Movimento de 30 deu-nos Getúlio, Flores, Jango -todos gaúchos. E, em 64, tivemos a fornada dos Médici, Geisel, Costa e Silva -gaúchos também.
A voz liberal de Minas é importante para aquilo que os cronistas políticos chamam de "desanuviar os horizontes".
Unida, Minas pode expressar o sentimento nacional de conciliação e retorno às práticas da democracia plena. Desunida, Minas provocará confusão maior do que as anteriores. E, aí, podem surgir a figura ou a espada de um condestável que reduzirá o descontentamento dos mineiros a um pronunciamento, a um novo ato institucional.
Dito isso, direi mais. Os baianos também são fundamentais, mas em outro sentido. Do Ato institucional nº 1 até a revogação do AI-5, os baianos pegaram suas violas e cantaram, encheram a juventude de maravilhas tão maviosas que os slogans libertários podiam ser usados, igualmente, para a campanha publicitária dos refrigerantes e das sandálias -que também se tornaram símbolos de libertação, saúde e alegria.
Não, não estou culpando nada nem ninguém. Mas, se acaso vier outra fossa nacional, e se vier, os mineiros desde já são culpados pelo que vai ou não vai haver. E espera-se dos baianos que peguem novamente suas violas e voltem a cantar.
Afinal, um pouco de rotina não faz mal a ninguém e, depois de certo tempo, até que ela tem alguns encantos e ajuda a gente a envelhecer sem dor, sem vergonha, mas com alguma pena de nós mesmos.
Neste ponto, pergunto a mim mesmo por que um carioca de vários costados se preocupa com mineiros e baianos.
Não tenho a sabedoria e a prudência dos mineiros, nem o estro e o assanhamento dos baianos. Por estranho que possa parecer, volta e meia me confundem com um deles.
Nunca me tomaram como pernambucano ou gaúcho, mas é frequente o equívoco que me atribui o dom de ser baiano ou mineiro. Devo ter feito muita besteira por aí para me negarem a condição de carioca, com tudo o que um carioca tem de particular e reprovável.
Aqui entre nós: o brasileiro perfeito deveria ter as qualidades e os defeitos dos mineiros e dos baianos. São folclóricos e dão para o gasto. Mas essa mistura só poderia ter sido feita num daqueles filmes de Glauber Rocha ou numa peça de Nelson Rodrigues.
Por falar nisso: o carioca Machado de Assis nunca se preocupou em definir ou em expor o brasileiro. Tirando a paisagem, seus personagens poderiam existir em qualquer parte do mundo."


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